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(In)existência da tutela jurídica do Pantanal na prática

Pedro Gabriel Siqueira Gonçalves

Jessé Cruciol Junior


O projeto ambiental da Constituição de 1988 é ambicioso e provocou mudanças de paradigmas sobre a relação do homem com a natureza. Basicamente, o art. 225 da CRFB/88 consolidou as principais inovações do pensamento internacional sobre o meio ambiente, cujos debates ganharam corpo sobretudo na conhecida Conferência de Estocolmo de 1972, reconhecendo o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de terceira geração ou dimensão, cuja titularidade pertenceria ao gênero humano. O art. 225 da CRFB/88 adotou essa perspectiva transindividual do meio ambiente, qualificando-o como bem jurídico de natureza coletiva.


No plano do Direito Penal, a Constituição de 1988 determinou a criminalização de condutas ou atividades lesivas ao meio ambiente, estendendo a responsabilização para alcançar as pessoas jurídicas (art. 225, § 3.º). Com isso, houve nítida ruptura com o pensamento tradicional acerca da teoria do delito, que fundava a responsabilização penal nas ações humanas e na culpabilidade (capacidade de entender o injusto e de se autodeterminar conforme esse entendimento). Aquela ordem constitucional de criminalização das violações ao meio ambiente, denominada de mandado de criminalização, foi atendida pelo Legislador ordinário, mediante a edição da Lei n.º 9.605/1998, conhecida como Lei dos Crimes Ambientais – LCA. A LCA sedimentou a responsabilização das pessoas jurídicas (art. 3.º) e sistematizou a criminalização das infrações ao meio ambiente tendo como norte o bem jurídico tutelado, distribuindo-os entre os crimes contra a fauna (arts. 29 a 37), flora (arts. 38 a 53), poluição (arts. 54 a 61), ordenamento urbano e patrimônio cultural (arts. 62 a 65), administração ambiental (arts. 66 a 69-A). Se a LCA avançou na proteção do meio ambiente com a consolidação da responsabilização penal das pessoas jurídicas, responsáveis pelas mais graves violações ao meio ambiente, a resposta penal do Estado, contudo, ficou muito aquém da gravidade das condutas incriminadas.


A LCA previu penas muito brandas aos crimes ambientais, comparativamente não só às figuras típicas correlatas da legislação codificada, marcadamente protetora de bens individuais, mas também em perspectiva aos crimes que tutelam bens jurídicos coletivos. Enquanto a pena mais grave prevista na LCA perfaz o intervalo de reclusão de 03 a 06 anos (art. 69-A), as reprimendas penais que promovem a proteção de bens jurídicos coletivos ultrapassam com folga o referencial de reclusão de 05 a 15 (art. 33 caput da Lei n.º 11.343/2016) ou mesmo o patamar de reclusão de 10 a 15 anos (arts. 267 e 273, ambos do CP). De igual modo, a LCA não prevê causas de aumento de pena ou qualificadores para os casos em que o crime ambiental seja cometido em desfavor dos Biomas especialmente protegidos, como o Pantanal, a despeito de sua especial proteção constitucional (art. 225, § 4º). Apenas o Bioma Mata Atlântica recebeu proteção específica, nas com resposta penal também branda, com pena de detenção de 01 a 03 anos (art. 38-A). Além de penas brandas, a LCA prevê pena restritiva de direitos, consistente na liquidação forçada da entidade, com aplicabilidade muito estreita e limitada à demonstração de reiteração delitiva (art. 24). Em balanço geral, a LCA representou avanço com a consolidação da responsabilização das pessoas jurídicas, mas parou no meio do caminho do projeto de proteção penal suficiente aos bens jurídicos ambientais ao deixar de prever resposta penal à altura às graves violações ao meio ambiente, notadamente pela inexistência de medidas de agravamento da pena nos casos de lesão aos Biomas nacionais, notadamente o Pantanal Mato-Grossense.


Outra questão relevante sobre a tutela jurídica do Pantanal em relação ao direito penal é que nos domínios do direito ambiental são de grande destaque os chamados princípios da prevenção e da precaução, enunciados normativos que ajudam a compreender o fenômeno penal na seara ambiental, principalmente no que se refere à técnica dos delitos de perigo abstrato.


O princípio da prevenção impõe cautela quando se trate de medidas que sabidamente venham a causar danos ao meio ambiente, de modo que “uma vez que se saiba que uma dada atividade apresenta riscos de dano ao meio ambiente, tal atividade não poderá ser desenvolvida” (RODRIGUES, 2019, p. 379). Já o princípio da precaução demanda que atos potencialmente perigosos ao meio ambiente sejam evitados ainda que haja dúvida (incerteza científica) sobre seu potencial danoso. Logo, a precaução tem o papel de impedir a prática do ato/empreendimento mesmo em caso de dúvida, valorizando mais a potencial proteção face ao risco meramente possível, tal qual propôs em sua ética o filósofo Hans Jonas (2006, p. 77). Isso porque os danos ao meio ambiente podem ser de consequências incalculáveis e ainda, muitas vezes, irreparáveis. Logo, a lógica a presidir aqui é que é evitar o dano é preferencial sobre a simples tentativa de reparação posterior. Essa lógica também deve se aplicar ao direito penal, atuando no âmbito da política criminal, ou seja, da criação e aperfeiçoamento de tipos e regimes penais. Não à toa a Lei de Crimes Ambientais, já citada, traz diversos crimes de perigo abstrato, ou seja, delitos em que a conduta penalmente relevante não só não exige um resultado naturalístico como sequer dela resulte necessariamente um dano ou perigo concretamente falando. Trata-se de delitos que descrevem a prática de conduta que é tida por perigosa por si mesmo, independentemente se no caso concreto houve efetivamente um perigo ao bem jurídico protegido. A despeito de certos questionamentos doutrinários sobre essa figura, ela já está consolidada na legislação brasileira e vem sendo reconhecida como legítima pela jurisprudência dominante.


Na sociedade hipercomplexa como a atual não se pode tolerar determinados riscos muito menos o resultado que adviria em caso de concretização desses riscos, motivo pelo qual é desejável e prudente que se proíba a conduta potencialmente perigosa a priori, ou seja independente de se avaliar se ela trouxe ou não um risco (que pode ser grande demais para ser suportado). Com isso, sabendo-se da fragilidade do bem ambiental, de sua indispensabilidade para o equilíbrio que sustenta a vida, e sua irreparabilidade, é bastante adequada a previsão de tipos de perigo abstrato na seara ambiental, criminalizando-se as condutas presumivelmente perigosas sem se perquirir em cada caso se houve ou não o perigo efetivo, o qual pode ser arriscado demais para ser esperado.


Imagem: Observatório Pantanal


Referências:


AMADO, Frederico. Direito Ambiental. 10.ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.


AMORIM, Helder Magevski de; BORCHARDT, Patrícia. O Que são "Estabelecimentos, Obras ou Serviços Potencialmente Poluidores" para os Fins do Artigo 60 da Lei n.º 9.605/1998?. In: SILVA, Rodrigo Monteiro da (coord.). Ministério Público e o Meio Ambiente. Desafios para o Desenvolvimento Sustentável. Leme, SP: JH Mizuno, 2020, p. 267-279.


FREITAS, Luciana Fernandes de; SOUZA, Renee do Ó. A Denúncia nos Crimes Ambientais Após a Superação da Teoria da Dupla Imputação na Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. In: SILVA, Rodrigo Monteiro da (coord.). Ministério Público e o Meio Ambiente. Desafios para o Desenvolvimento Sustentável. Leme, SP: JH Mizuno, 2020, p. 351-368.


JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad Marijane Lisboa; Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

MARCÃO, Renato Marcão. Crimes Ambientais. Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.605, de 12-2-1998. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.


RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.


Sobre os autores:


Pedro Gabriel Siqueira Gonçalves: Procurador da República na área da Saúde/Educação Procurador Regional dos Direitos do Cidadão e procurador Regional Eleitoral em Mato Grosso do Sul. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2006). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa - UAL (2018) com título reconhecido pela Universidade de Marília (UNIMAR). Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGD-UFMS) (2020 - atual). Integrante do GP “Direitos Humanos, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável Global” (CNPq-UFMS).


Jessé Cruciol Junior: Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGD-UFMS). Especialista em Direito Tributário. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2009). Integrante do grupo de pesquisa "Direitos Humanos, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável Global" - CNPq/UFMS. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ-MS). Foi Procurador da Fazenda Nacional.



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